domingo, 21 de dezembro de 2008

Causa

Acordara num lugar completamente estranho. Tudo parecia antiquado demais, velho demais, destruido demais. Chegou até a cogitar se não havia sido transportado para outros tempos, mas não demorou tanto pra ele perceber que nada era razoável na cabeça dele. Ele pensava em arcos e flechas, crianças fugindo, um lago bem extenso e uma guerra, mas uma guerra medieval, corpo a corpo.

Entrou no quarto uma mulher gorda, quando digo gorda digo muito gorda. A mulher devia pesar uns 200kg, no mínimo. Pois mesmo enorme, seus olhos eram lindos, um azul claro tão claro que doia olhá-los. A gorda vestia um vestido florido, eram tulipas roxas, ele mesmo nunca tinha visto tulipas roxas, assim como nunca tinha visto uma senhora tão obesa, nem mesmo tinha visto um alce pregado na parede (que era até um pouco horripilante).
A mulher havia trazido um delicioso café da manhã, umas bolachinhas deliciosas e uma geléia de cor indefinível. Depois de devorar a comida olhou envergonhado para a mulher:
- Desculpe, mas a senhora, seria quem?
- Senhora Vullienot, Margot Vullienot. - A estranha mulher sotaqueava um francês muito estranho. - Senhor Winsc, o senhor ficará deitado por muito tempo? Meu marido está perdendo o pouco de cabelo que ele tem, diz que se você não melhorar as crianças todas serão devoradas. - Fez uma pausa de pouco mais de dois segundos, mas que para ele pareceu durar pouco menos de duas horas. - Pois bem, não sinta-se pressionado, apenas avise quando quiser tomar banho, daí chamo uma das camareiras para banhar o senhor.
- Eu posso muito bem tomar banho sozinho, levanto já, onde fica o banheiro?
- Banheiro?
- É, uma ducha? Ou só vou lavar o rosto em uma piá?
- Ducha... O senhor não está entendendo, imagino que não esteja bem, talvez seja melhor chamar o curandeiro. Com licença senhor. - A Senhora Vullienot saiu com um ar deveras confuso do quarto imundo.

Curandeiro? Guerra? Crianças devoradas? Onde estaria Gabriel? Ele lembrava de estar andando pelo centro da cidade, depois tinha aquelas imagens estranhas de flechas e crianças correndo. Ele perguntava o que estava acontecendo. Levantou da cama atrás de resposta e se viu nú e ensangüentado. "Meu... Deus... O que aconteceu? Onde estou?" Antes de o desespero o dar forças para berrar entrou no quarto um sujeito gracioso, mas acima de tudo desesperado. O senhor Vullienot era alto, forte, charmoso, muito diferente da sua esposa.
- Vejo que ainda sangras, meu amigo.
- Amigo? Quem... É o senhor? - Gabriel estava cada vez mais confuso.
- Vejo que ainda estás confuso, meu amigo. É, bem disse Margot, é melhor o curandeiro chegar logo, pois vejo que o nosso melhor guerreiro sofre da cabeça. Winsc, você precisa se recuperar. Sei que pouco vai adiantar, talvez até lhe faça mais confuso, mas preciso lhe dizer como andam as coisas: os Pormenodes ocuparam as redondezas, as crianças da periferias já foram devoradas, os pais estão com muito medo. E você sabe bem, os Pormenodes se alimentam de medo. Procuramos deixar as crianças no Centro da Vila, conseguimos fazer com que a guerra continue a ser travada no lago, como o senhor pediu.
- Deus...
- O que? Viu algo?
- Não, só não sei onde estou. Talvez eu nem saiba quem sou eu...
- Senhor Gabriel Winsc, Vila de Guillina, Condado de Lexin. Vamos?
- ... Não tenho outra alternativa... Tenho?
- Se você quiser ver crianças morrerem, pode ficar deitado.

Gabriel pôs uma espécie de roupa de batalha, daquelas que ele imaginava nos livros do J.R.R. Tolkien. O Senhor Vullienot deu-lhe um arco dourado, pesado demais pra ele pensar em manejar. Logo ao sair da casa viu-se num lugarejo longe de tudo: casas antigas, rua de terra, árvores, milhões delas, todas se mexendo com o vento forte que levava tudo que via pela frente.
Gabriel pensava em perguntar alguma coisa, mas nada lhe soava inteligente o bastante para de ele tomar coragem para questionar sobre qualquer coisa. No momento que ele abriu a boca surgiu uma espécie de vulto negro das sombras. Agarrou o pescoço de Gabriel e rosnou com uma voz que parecia animalesca:
- O seu lugar não é aqui... Volte pra onde veio, pois não há dignidade em lutar contra homens que não sabem das suas causas.
- Senhor Winsc sabe bem o que faz aqui, luta contra vocês, seus monstros covardes! - Senhor Vullienot sacou a espada da bainha e num movimento fantasticamente rápido atingiu o monstro.
- Volte daonde veio, seu maldito! - Gritou o bicho, que caiu ao chão morto.
Os olhos de Gabriel brilharam e ele caiu.

Ao abrir os olhos via um monte de pessoas ao seu redor. Ele deitava no chão enquanto um homem lhe segurava a cabeça no colo. Por mais que Gabriel soubesse que havia algo de errado, ele sabia que estava seguro, pois estava de volta a realidade: nunca ficou tão feliz em ver pessoas normais, prédios, feliz em sentir o cheiro nauseante da fumaça dos carros.
O homem era um médico, lhe disse:
- Garoto, pelo que eu entendi você sofre de algum tipo de disfuncionalidade temporal.
- O quê? - A cabeça de Gabriel latejava.
- O senhor... - O médico grudou os lábios no ouvido do garoto e cochichou tão baixo que mal era possível ouvir. - O senhor, senhor Winsc, não vai nunca mais voltar a Guilliana... E nós, os Pormenodes, vamos devorar todas as crianças daquela vila medíocre... Não se preocupe... Só esqueça... Você não pode fazer nada... - Ele olhou fundo nos olhos de Gabriel, que desmaiou novamente, sem entender nada do que foi-lhe dito.

Acordou mais tarde em seu escritório. Gabriel Winsc era advogado, nunca ouvira falar sobre o nome Guilliana ou Pormenodes... Só sabia que odiava as crianças...