sábado, 24 de maio de 2014

Domo de vidro

Encostados no parapeito do décimo andar, ela me diz que queria saber como é a sensação que o suicida que pula sente antes de encostar o chão. O segundo que precede o homicídio culposo, o mais contente dos segundos dos últimos tempos. E logo ela deixa claro que não é suicida coisa nenhuma. Ela me pergunta se eu já pensei nisso. E assim como ela tratou de rapidamente dizer que não pensa no próprio suicídio como uma realidade, omiti o meu complicado histórico de ideias obscuras. Quem me leu há muito tempo sabe que me apaixonei pela morte sem vergonha de tornar pública a minha paixão. Longas e solitárias noites de insônia perdidas em planos infalíveis para findar a própria vida. Esperando o momento certo para sentir na pele o último e mais precioso dos segundos dos últimos tempos. Tudo documentado nesse mesmo endereço em peças de teatro disfarçadas de prosa e poesia.
Sim, já pensei na sensação do último milésimo de segundo um milhão de vezes. É que só passei a amar a vida há pouco tempo. Antes era normal me sentir apto a pular do vigésimo andar de um prédio público, atrapalhando o trânsito numa tarde de terça feira chuvosa. Deixando muita gente triste porque fiquei com preguiça de viver. Eu bocejo.
E me sinto tão obrigado quanto ela a tornar o mais transparente possível a minha ausência de relação com a morte. A morte já passou. Foi lá de casa pra outro lugar, conhecer gente nova, ver tudo o que sempre viu desde que a vida existe. Transparente. Exposto num domo de vidro pra ninguém me perder. Pra todo mundo ver que minha disposição e minhas noites mal dormidas estão completamente dedicadas à arte de viver todos os dias. Os dias mais bonitos nessa grande ilha. Com ela e com os arrepios e com uma felicidade similar ao daquele último segundo do descontente suicida.
Encostados no parapeito do décimo andar, teus olhos brilham com os meus fixados na escuridão da tua retina. A vida parece tão boa. É claro que eu pularia, mas só se eu saísse ileso e pudesse subir e pular e subir e pular, como um viciado por adrenalina que repete incessantemente as insanidades de um emocionante dia a dia. E se teus olhos que brilham dissessem que vamos pular de um precipício, pulamos de mãos dadas. Pra depois dormir uma noite de puro orgulho da própria coragem. E no dia seguinte, transcrever as sensações pra todo mundo, documentadas em literatura, transparente no meu domo de vidro.
É. A vida parece tão boa e eu me sinto justo, escrevendo o quanto gosto dela.