domingo, 26 de dezembro de 2010

Reversibilidade

"Ó Anjo de alegria, já viste a desgraça,
Os soluços, o tédio, o remorso, as vergonhas,
E o difuso terror dessas noites medonhas
Que o peito oprimem como um papel que se amassa?
Ó Anjo de alegria, já viste a desgraça?

Ó Anjo de bondade, já viste o rancor,
As mãos em gesto aflito e as lágrimas de fel,
Quando brande a Vingança o seu apelo cruel
E de nossas virtudes torna-se senhor?
Ó Anjo da bondade, já viste o rancor?

Ó Anjo de saúde, já viste os Delírios,
Que, ao longo das paredes do asilo alvadio,
Como exilados vão em passo tardio,
Movendo os lábios e buscando a luz dos círios?
Ó Anjo de saúde, já viste os Delírios?

Ó Anjo de beleza, as rugas já não viste,
Não viste o medo da velhice e este suplício
De ler esfíngico pavor do sacrifício
No olhar que outrora no saciou a gula triste?
Ó Anjo da beleza, as rugas já não viste?

Ó Anjo de ventura e júbilo e clarões,
Davi da morte se teria levantado
Sob os eflúvios de teu corpo enfeitiçado;
Mas a ti só imploro as tuas orações,
Ó Anjo de ventura e júbilo e clarões!"

Charles Baudelaire

sábado, 11 de dezembro de 2010

Prazer da guerra

Se me pus como poeta
Hei de brigar comigo
Para que saiam os versos.

Dizem que ser poeta é inspirar.
Pouco sabem que de inspiração
Não há nada na poesia.

Há uma batalha ideológica.
A épica guerra entre
A mente que gera o texto
E a mão que traduz o pensar.

A guerra advém da mão
Que não aceita a escravidão.
Não a mente, diz a mão.

A mão gosta de escrever,
Ela não aceita ditados.
Que ódio tem dos ditados.

A mente é ditadora,
Diz pra mão que é o poeta.
A cabeça é a poesia.

Mas não fosse a ditadura,
Que seria da poesia
Senão anarquia da mão?

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Serenata

Resolvi seguir os conselhos da mãe. Estava eu com meu violão embaixo da janela dela. Era minha última tentativa. Se uma serenata não funcionasse, nada funcionaria. Que besteira, serenatas. Eu falei: Mas mãe, serenata? Que coisa mais jacu! Ela respondeu: Ai filho, você não entende nada de mulher, não é mesmo?
Ela entendia, eu não, então eu toquei uma belíssima música que falava sobre o amor e a necessidade de ela morar em meu coração. E ela riu, gostou da atitude, e respondeu: Que merda de música, hein?
Gosto musical é algo muitíssimo pessoal. Queria poder dizer: gosto é que nem cu, cada um tem o seu. Mas eu estaria mentindo. A maioria, digo graaaande maioria, das pessoas tem o mesmo cu fedorento, ou seja, o mesmo gosto musical fedorento. É que, hoje, o gosto musical não está relacionado à qualidade musical. As pessoas não estão conectadas pela música do mesmo modo que estão conectadas a escritores, por exemplo. A música deixou de ser arte e passou a ser som de fundo, ou som de dança. Essa é a merda, todos conhecem as mesmas músicas que, artisticamente falando, são péssimas. Todas as pessoas cantando unissonicamente uma música ruim.