sábado, 7 de março de 2009

Roça

De dia era trabalho, de noite era noite. Não tinha muita outra opção, senão viver essa vida de sempre. Vida dura, cansativa. Nós acordavamos cedo, antes do sol nascer, tomavamos um banho gelado no rio, tomavamos o nosso café-da-manhã e pegavamos as enxadas. O trabalho era de ofegar, mas nós nos aguentavamos até que o pai dizia Tô indo mijar. Era a felicidade da criançada e a tristeza do pai. Hoje eu digo que ele ia mijar só pra nos dar um recreio, quando eu era moleque eu só achava que era burro. Enfim, corriamos cada um pra um canto, subiamos nas árvores, mergulhavamos no rio, entravamos debaixo da casa, dos móveis, do trator. O importante era esperar ele chegar no campo e se ver sozinho, daí ele se acalmava e dizia, Que criançada maldita, vou trabalhar sozinho de novo. Era o dia inteiro festando, jogando bola, correndo, empinando pipa, nadando, até o anoitecer.
Eis o momento crucial do dia, a noite vinha pra nos assustar. Chegavamos em casa e o pai olhava com cara feia, Onde vocês estavam? Tive de trabalhar sozinho, agora vão levar surra, seus safados! E quem conseguia correr corria, quem não conseguia, apanhava. Mas não era só a surra que assustava. Lá fora acontecia muita coisa. Não era raro ver os olhos do Boi Tatá, espreitos à espera de alguém sair de casa. Se alguém saia os olhos seguiam o sujeito até a porta. De vez em quando, se demorava muito pra sair a janta, ouviamos barulhos fora de casa. Todo mundo sabia que o Seu Vitolino era lobisomem, aliás, como homem o Seu Vitolino era bom, sujeito simpático, mas os lobisomens não levam em consideração as simpatias que sentiram quando gente. O bicho tomava o corpo do Seu Vitolino e ele saia a roubar a janta do pessoal. O vagabundo não podia roubar um pedaço de carne, ou uma galinha; sempre roubava o porco, o maior deles.
Uma vez, depois de passarmos a tarde inteira brincando, o pai não quis nos bater e disse, O castigo de vocês é bater no lobisomem. Minha mãe não queria, pois Seu Vitolino, antes de ser lobisomem, era bom homem, mas o pai se importava mesmo é com a comida que faltava na mesa. A mãe disse, Além de quê, é perigoso! Se esse homem morde uma criança dessas? O pai não quis saber, fez-nos esperar atrás da porta da cozinha com paus e pás.
O cachorro entrou, era grande, forte, bem preto, ficamos quieto, sem saber o que fazer. Ele olhou pra mim, rosnou com aqueles dentes enormes, daí fechei os olhos. Ouvi um baque forte e o choro do cachorro, abri os olhos e estava meu pai com a enxada ensanguentada na mão. A mãe gritava, Falei pra você não fazer isso com os piás!
No dia seguinte Seu Vitolino mancava muito, as pessoas perguntava o que acontecera, ele dizia que caiu da escada. Nunca mais se ouviu falar dele perto de casa, muito menos de lobisomens.