segunda-feira, 2 de março de 2015

Etéreo

IV

Limitando dessa maneira, nossa pesquisa à imagem poética em sua origem a partir da imaginação pura, deixamos de lado o problema da composição do poema como agrupamento de imagens múltiplas. Nessa composição do poema intervêm elementos psicologicamente complexos que associam a cultura menos ou mais distantes e o ideal literário de um tempo, componentes/

Subo os olhos. Eu sempre subo os olhos. No meio das frases. Num ponto final qualquer. Pra depois eu me perder nas palavras. Nos ritmos dos espaços. Procurando a última palavra. Enfim, sinto o ônibus arrancar, subo os olhos e vejo um homem. Abaixo os olhos. Tenho a impressão que ele me chama a atenção, então não procuro palavra alguma, mas levanto os olhos novamente. Ele mimetiza meus fones de ouvido enquanto balbucia palavras inaudíveis aos meus ouvidos enterrados de música. Dogs, do Pink Floyd, se lhe causa curiosidade. Retiro os fones.
"Esses computadores... (sorri largo)"
"Como?" Ele dá uma leve gargalhada. Deixa seus pertences no assento da fila da frente, o da esquerda. Eu continuo sentado na janela, com meus pertences no assento ao meu lado. Ele em pé.
"Esses computadores. Nojentos. Inúteis. Esses lixos" Fala com ódio, acumulando baba nos cantos das bocas. "Vou até ficar de pé (e sorri). Você conhece o garoto que venceu o computador?" Só que eu não faço ideia do que ele falou.
"Difícil vencer os computadores" Pensei em dissertar sobre como as tecnologias tomaram conta das nossas vidas. Mas ele é mais rápido.
"Pois o garoto venceu. Tinha 22 anos na época. Hoje é político na Rússia."
Eu sorrio. Não faço a menor ideia do que ele está falando.
"Qual é o nome do garoto?" Ele me pergunta.
"Que garoto?"
"PFT PFT" Ele faz com a boca um som que parece a de um bico de pneu sendo pressionado, largando ar comprimido para a atmosfera. "O que ganhou do computador."
"Não sei."
"Como não sabe? Você é burro?"
Eu respondo com um sorriso sincero. Olho em volta. Fico me perguntando se aquele homem realmente existe.
"Garry Kasparov. PFT PFT" Ele tinha as duas mandíbulas alinhadas, formando uma parede de dentes amarelados. Era impossível entender o que ele dizia.
"Quem?"
"Você é formado em que?" Me olha zangado.
"Arquitetura. Sou estudante."
"Universitário e não sabe quem é o Garry Kasparov." Essas palavras saindo duma boca sem muita dicção.
"Não sei quem é."
"COMO NÃO SABE? VOCÊ SÓ PODE SER BURRO!" Ele sorri. Eu devolvo o sorriso. Agora eu tenho certeza que ele não existe. Eu consigo ouvir as pessoas cochichando e rindo. Tenho certeza que estão rindo da minha conversa com o ar. O Ar em pé, eu sentado.
"Não sei."
"Sim. Só pode ser burro. Garry Kasparov. Certa vez joguei com (e esse nome eu realmente não faço a menor ideia). Empatamos." Solta um sorriso orgulhoso. "O garoto tinha 19 anos quando foi campeão de xadrez."
"Ah, xadrez."
"Sim. Xadrez. PFT PFT" Ele sorri.
"O senhor joga?"
"Por toda a minha vida."
Eu sorrio.
"Muito dos campeões são muito novos. Não tenho medo de perder. Muito menos pra essa geração mais nova. Eu quero que todos eles me superem. Isso significa que a humanidade evolui."
Eu consinto em silêncio.
"Certa vez eu ganhei do computador. PFT PFT. O computador é uma máquina burra. Um lixo. PFT PFT. Eu fui lá pra Manaus, me comunicava com um pessoal da Universidade Federal de lá. E fui convidado pra participar de um jogo contra o computador. Eu sou o locutor aqui. E você meu interlocutor, certo?"
"Certo."
"Certo. E quando você é o locutor, eu sou o interlocutor. Pois eu e o computador estávamos num jogo de locutor e interlocutor. Então eu sabiamente lhe pergunto qual é o feminino de papa. E o computador não sabe. O computador não sabe porque o programador dele é burro. E ele precisou de um dicionário pra saber que eu tinha ganho. Você sabe quais são os modos do papa?"
(Modos? Que porra esse cara tá falando?) Eu sei que ele não existe. E eu já me sinto confortável em conversar sozinho no ônibus. Mas fico me perguntando se ele faz parte da minha imaginação ou se ele é um espírito. Fruto de sinapses absurdamente ativas ou o simples vagar de um morto pelo mundo dos vivos? Me preocupo. Se ele for um morto, ele pode ficar comigo pro resto da minha vida. Eu não quero isso. Eu penso "Será que ele não vai desaparecer?"
"PFT PFT. Qual é o modo, guri?" Ele vocifera. Ele não desaparece.
"Não sei."
"MAS VOCÊ É MUITO BURRO! O juiz tem, o promotor tem, a presidenta tem. O papa também tem. Vossa Santidade. Vossa Santidade não tem sexo. Mas a instituição. O canonismo (E as palavras dele são praticamente inaudíveis. Não pelo efeito dos fones de ouvido, mas das mandíbulas alinhadas) O réptil em espécie é a cobra. Existe a cobra macho e a cobra fêmea. Existe o cobro?" Eu não entendo cobro. Cobro? Nunca ia imaginar que ele disse cobro.
"Quê?"
"Como assim o quê? Eu só posso estar falando sozinho." Ri de vexame, olhando para o lado. Eu sinto que ele não existe. Mas eu consigo ver tão claramente os vincos das rugas marcadas na pele negra. Vejo seus cabelos brancos penteados para trás. Vejo os olhos através dos meus óculos e dos óculos dele. Percebo sua camiseta vermelha, de supermercado, suas bermudas. Não sei o que veste no pé. "Qual é o réptil em espécie?" Mas pense. Eu não consigo ouvir ele. Eu não faço ideia sobre o que ele está falando de novo.
"Réptil?"
"A COBRA! NÃO EXISTE COBRO!" Ele grita irritado. Eu sorrio um sorriso sincero e sem vergonha. Eu não tenho vergonha.
"PFT PFT. Você sabe o feminino de papa?" "Não, não fala." Eu penso em dizer que dizem que Joana D'Arc foi papisa na França, depois do Cisma do Ocidente. Mas não falo. "O papa mulher nunca existiu. Mas eu respondo o óbvio: papisa. E o programador tem que checar no dicionário. É muito burro. Ele é um programador burro e eu ganhei do computador dele."
Jesus.
Eu sorrio largo. 
"Agora você me pergunta: João de Marquês, qual é o seu grau de instrução?"
Eu espero ele responder.
"Pergunta!"
"E qual é o seu grau de instrução?"
"Quarta série. Estudei só até a quarta série. Mas eu leio muito. Estou lendo sempre." E fala um monte de nomes que suponho que sejam russos. Eu mal consigo ouvir a frase "Quarta série", quanto mais autores russos.
"E durante a vida, o que o senhor fez?"
"Como assim?"
"Imagino que seja aposentado. Qual foi a sua função quando era um trabalhador?"
"Sim, aposentado. Tenho 70 anos. Trabalhei nas maiores fábricas do mundo. E não digo aqui no Brasil. Viajei o mundo todo. Trabalhei em duas empresas americanas, uma francesa e uma italiana." Eu tenho certeza que ele não existe.
Uma garota muito bonita passa pela catraca. Usa headphones. Ela olha para o senhor meu amigo imaginário e lhe pede licença com um sorriso simpático. Olha para mim e também sorri. Senta ao lado dos pertences do amigo.
Caralho, ele existe.
"Meu ponto é logo ali. Não posso perder."
Eu sorrio largo. Ele é real e some. Não que eu não estivesse aproveitando nosso dialogo, é que não queria levá-lo pra casa como encosto. Leve em consideração minha educação religiosa espírita.
"É assim que uma pessoa se educa. Não tenho medo de ninguém. Pode vir engenheiro, médico, juiz, presidente. Sei de tudo. E fico muito feliz que eu tenha esse hábito. Meus filhos são militares. Mas comigo não tem casca grossa não. Eu sou a casca grossa. Eu era militar na época do nazismo. Fui comandado e comandante de..." E o balbuciar me remete a nomes alemães e russos.
Ele olha para todos os lados, numa performance teatral. Olha todas as janelas, todos os sentidos.
"O MEU PONTO!"
Estendo-lhe a mão.
"Não, acho que vou ficar aqui, conversando com você."
Eu sorrio.
"Não. Vou sim. Muito prazer. Você fala com João de Marquês e eu fico muito grato por você ter participado dessa agradável conversa. Como é seu nome?"
"Eduardo Silka." E apertamos mãos e trocamos sorrisos.
Ele acena para todos no ônibus. Diz "Tchau, pessoal."
Ele desce no ponto e uma histeria toma conta do ônibus. Os risos não são contidos.
Solto mais um sorriso muito largo. Fico me imaginando com 80 anos, perdido nas minhas memórias e no meu conhecimento. Conversando com estranhos sobre assuntos estranhos. Completamente maluco. Mas ao invés do rosto liso dele, minha pele se cobriria com uma enorme barba que cobriria a minha barriga. Confundindo a sociedade com minha pele dúbia de mendigo e de profeta.

... .... ... /o ideal literário de um tempo, componentes que uma fenomenologia copleta deveria sem dúvida examinar. Mas um programa tão vasto poderia prejudicar a pureza das observações fenomenológicas, decididamente elementares, que queremos apresentar. (...)